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John e Yoko em frente ao Dakota |
Primeiro Ato
John Lennon e Yoko Ono se mudaram em 1973 para o edifício Dakota, um
prédio imponente no número um da Rua 72 Oeste, de frente para o Central Park.
Inicialmente de aluguel do ator Robert Wagner, mas aos poucos compraram cinco
unidades no prédio, moravam no sétimo andar, apartamento número 72 e usavam o
vizinho 71 como estúdio e escritório. A segunda-feira oito de dezembro ia
ser agitada, John estava na fase de divulgação de seu primeiro álbum de
inéditas desde Walls and Bridges (1974), o Double Fantasy, lançado em 17 de
novembro e assinado por ele e Yoko. Ele costumava tomar o desjejum no
Café La Fortuna, a algumas quadras do Dakota na Rua71 Oeste, mas o local não
abre às segundas. Por volta de 10 da manhã saiu para cortar o cabelo numa
barbearia próxima, optou por um corte estilo anos 50, com topete, como o da
tribo inglesa de Teddy Boys a que os Beatles pertenciam no começo.
De volta ao Dakota, às 11 da manhã recebeu a fotógrafa Annie Leibovitz.
Ele conversara longamente com o jornalista da Rolling Stone Jonathan Cott na
sexta-feira anterior, dia cinco, e Annie foi fazer as fotos numa sessão que
durou 90 minutos. Uma delas ficou mais famosa, ele encolhido nu sobre Yoko
totalmente vestida, a capa da edição 335 de 22 de janeiro de 1981. A revista
queria fotos só dele, mas John exigiu incluir Yoko porque Double Fantasy era do
casal.
O próximo compromisso foi por volta de meio dia e 30, uma entrevista
sobre o álbum para os jornalistas Dave Sholin e Laurie Kaye, da RKO Radio
Network, a primeira a transmitir via satélite. Entrevistado pela rede britânica
ITV em 2010, nos 30 anos de morte de John, Dave Sholin recordou: “O Dakota é um
prédio impressionante. (No sétimo andar, apartamento 72) entramos num espaço
incrível, uma sala maravilhosa onde tivemos que tirar os sapatos, sentamos em
almofadas e Yoko nos saudou. Olhei para cima e vi nuvens brancas lindas
pintadas no teto. Yoko conversou conosco por quase meia-hora, aí uma porta
abriu, John entrou, deu uma pirueta no ar e disse: ‘Aqui estou pessoal, pronto
para começar o show.’ Ele abriu os braços e veio em nossa direção, como se
quisesse nos deixar confortáveis. E funcionou, em dois ou três minutos
conversávamos como se nos conhecêssemos há anos. Nas três horas e meia em que
estivemos juntos, ele se mostrou feliz e cheio de entusiasmo com as novas perspectivas
familiares e musicais. Ele pretendia fazer uma turnê do novo disco.” John
concluiu a entrevista com uma frase otimista: “Meu trabalho só terminará no dia
em que estiver morto e enterrado, o que espero demore muito, muito tempo.”
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Foto de Annie Leibovitz para a Rolling Stone |
Às cinco da tarde, mais ou menos, ele e Yoko saíram do Dakota, logo
depois da equipe da RKO, iam para o estúdio trabalhar. Por algum motivo, o
carro deles não apareceu, então John pediu uma carona ao pessoal da RKO. Antes
de entrar no carro atendeu vários fãs que pediram autógrafos. Um deles
foi seu assassino, Mark Chapman, que rondava o Dakota há alguns dias. Um
fotógrafo amador, Paul Goresh, que estava sempre no Dakota e já conhecia
John, registrou o momento. Goresh foi ao Dakota ver se John tinha autografado o
livro A Spaniards In The Works que deixara na portaria. Estava autografado e
Goresh o resgatou.
Ele falou mais cedo com Mark Chapman, que lhe disse ter vindo do Havaí
só para pegar um autógrafo na sua cópia de Double Fantasy. Quando Goresh
perguntou onde ele estava hospedado, Chapman lhe deu um fora e se afastou.
Goresh contou ainda que cumprimentou John na calçada e este perguntou se ele
tinha pego o livro. Foi quando Chapman se aproximou com o LP nas mãos e o
estendeu para John sem dizer nada. “Você quer que eu autografe?” Chapman fez
que sim com a cabeça, John autografou, perguntou se era só isso que ele queria,
Chapman o pegou de volta e se afastou sem dizer uma única palavra. John virou
para Goresh com um olhar tipo “que esquisito” e entrou na limusine.
Dave Sholin contou na entrevista citada acima que no caminho para o
estúdio John falou de seu relacionamento com Paul McCartney, com quem brigou
nos momentos finais dos Beatles e os dois trocaram farpas em entrevistas e em
músicas de seus álbuns solo. “Ele é como um irmão, eu o amo, coisas de família,
a gente tem altos e baixos, mas no fim das contas eu faria qualquer coisa por
ele e acho que ele faria o mesmo por mim,” disse John, segundo Sholin.
No estúdio Record Plant, no 321 da Rua 44 Oeste, ele finalizou a canção
de Yoko Walking On A Thin Ice, lançada como single em seis de janeiro de 1981.
Gravou várias partes de guitarra com sua Rickenbacker 325, de 1958, usada nos
primeiros tempos dos Beatles. Em seguida mixou a canção com o produtor do
disco, Jack Douglas, que lembrou em entrevistas: “John estava nas nuvens.
Acabamos a mixagem naquela noite e os acompanhei até o elevador: ‘A gente se vê
no Sterling,’ o estúdio de masterização, na manhã seguinte às nove. Ele era só
sorrisos, levava fitas cassete com gravações e Yoko também era só sorrisos. E a
porta do elevador se fechou.” Isso foi por volta de 22h30, cogitaram de
jantar no restaurante Stage Deli, frequentado por celebridades porque ficava perto
do famoso Carnegie Hall, mas decidiram ir para casa dar um beijo de boa noite
no filho, Sean Ono Lennon, então com cinco anos.
O porteiro do Dakota, John Hastings, um fã dos Beatles, estava lendo uma
revista pouco antes das 11 da noite, quando ouviu tiros do lado de fora e
barulho de vidro estilhaçado. John cambaleou para dentro, andou vários passos e
caiu, espalhando fitas cassete que tinha nas mãos. Yoko veio logo em seguida
gritando, “John foi baleado”. Hastings apertou o alarme que chamava a polícia,
correu e se ajoelhou junto a Lennon. Yoko gritava pedindo uma ambulância,
depois foi para junto do marido e gritou “Tudo bem John. Você vai ficar bom.”
Hastings tirou a gravata para usar como torniquete, mas não havia lugar para
aplicá-lo. O sangue jorrava do peito e da boca de Lennon, seus olhos abertos e
desfocados, ele tossiu vomitando sangue e pedaços de tecido. Dois carros de polícia
chegaram, os policiais Bill Gamble e James Moran entraram no prédio, viram
Lennon, viraram-no para avaliar os ferimentos, disseram que não dava para
esperar uma ambulância e levaram-no para um dos carros, que saiu em disparada
com ele e Yoko dentro.
Outros dois policiais, Steve Spiro e Peter Collin, prenderam Mark
Chapman, que não tentou fugir. Ele sentou na calçada e ficou lendo o livro O
Apanhador do Campo de Centeio, de J.D. Salinger, que trata das angústias
existenciais e da revolta do adolescente Holden Caulfield diante dos desafios
do mundo.
Segundo Ato
Pouco depois de meia-noite, o doutor Stephan Lynn, chefe da emergência
do Hospital Roosevelt, no número 1000 da Décima Avenida com a Rua 59 Oeste,
saiu para falar com o batalhão de jornalistas aglomerado do lado de fora:
– John Lennon foi trazido num carro de polícia para o pronto socorro do
Hospital Roosevelt esta noite, pouco depois das 11 horas. Ele estava morto ao
dar entrada. Mesmo assim, extensos esforços para ressuscitá-lo foram feitos
mas, a despeito de transfusões e de outras medidas, não foi possível salvá-lo.
Ele tinha sete ferimentos a bala no braço esquerdo, no peito e nas costas.
Houve danos significativos nos principais vasos do peito que provocaram maciça
perda de sangue, o que provavelmente resultou na sua morte. O óbito foi
declarado às 23h 07m.
Em entrevistas, o doutor Lynn rememorou aquela noite em que dava plantão
na emergência do Hospital Roosevelt: “Dois policiais entraram com o paciente
numa maca e mandei que o colocassem na sala de ressuscitação. Havia três
perfurações de bala na parte superior do lado esquerdo do peito e uma no braço
esquerdo. Não sabíamos quem era ainda, a rotina é colocar o nome numa etiqueta
presa na roupa, olhei e dizia 'John Lennon'. Uma enfermeira não acreditou,
disse ‘não parece John Lennon, não pode ser.’ De repente ouvi alguém
chorando e entrou Yoko Ono, aí tivemos certeza de quem era e algumas pessoas da
equipe começaram a chorar." Lynn logo constatou que as balas [hollow
point] tinham destruído todos os vasos sanguíneos que saíam do coração, a aorta
e suas ramificações: "Ficou claro que nada mais havia a fazer, mesmo assim
eu massageei o coração com as mãos numa tentativa de fazê-lo bater e
fizemos uma transfusão de sangue, mas, com todos os vasos sanguíneos
destruídos, de nada adiantou. Restou-nos declarar o óbito. Ficamos todos
em estado de choque e muitos choravam compulsivamente."
Estas declarações incoerentes do médico refletem a perplexidade e o estado de choque dele e da equipe. Se estava morto, como ressuscitá-lo? Se o sistema circulatório foi destruído, para que massagear o coração e fazer uma transfusão?
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Yoko Ono na saída do Hospital Roosevelt |
O doutor Lynn saiu da sala para dar a notícia a Yoko. Sua primeira
reação foi de negação. ‘Não é verdade. Você está mentindo. Não pode ser. Não
acredito,’ disse ela, segundo o médico, que prosseguiu: “Ela caiu, coloquei
minha mão atrás de sua cabeça para evitar que batesse no chão. Chorava
desesperadamente e repetia ‘não, não, não’. Uma enfermeira se aproximou e lhe
entregou a aliança de John. Ela se conteve e pediu que não divulgassem nada até
ela chegar em casa e contar a Sean, cinco anos, que devia estar assistindo
televisão àquela hora.
Não foi possível atender ao pedido porque um jovem jornalista da rede de
TV ABC, Alan Weiss, sofrera um acidente de motocicleta e estava sendo atendido
na emergência. Quando soube do que se tratava, imediatamente ligou para a
redação e a ABC foi a primeira a dar a notícia. Sean não estava vendo TV, já
tinha ido dormir. Numa entrevista a Philip Norman, autor da biografia John
Lennon, A Vida, lançada aqui pela Companhia das Letras, Sean disse que acordou
no dia seguinte sem saber de nada: “Senti uma atmosfera muito estranha na casa,
todas aquelas multidões do lado de fora. Minha mãe sentada na cama debaixo do
cobertor e eu juro que me lembro de ter visto um jornal, quase entendendo algo
da manchete. Lembro de ficar de pé ao lado dela, enquanto me dizia ‘seu pai
levou tiros e morreu’. E lembro que a coisa mais importante para mim era que
não queria que ela me visse chorar. Lembro-me de dizer: ‘Não se preocupe mamãe.
Você ainda é jovem, vai encontrar outra pessoa’. Aos cinco anos de idade achava
que aquilo era a coisa mais madura pra dizer.”
Terceiro Ato
Às duas da madrugada, o porta-voz da polícia, James Sullivan, falou com
centenas de jornalistas apinhados na sala de imprensa do 20º distrito no nº 120
da Rua 82 Oeste.
– Pedimos que viessem para dar um breve relato do que sabemos até agora
sobre o homicídio de John Lennon. Prendemos Mark David Chapman, residente na
Rua South Kukui 55, no Havaí, pela morte de John Lennon. É caucasiano, pele
bronzeada, um metro e setenta, 80 quilos, cabelos castanhos, olhos azuis, 25
anos de idade. Nascido no dia 10 de maio de 1955, aparentemente está em Nova
York há mais ou menos uma semana, tendo se hospedado na Associação Cristã de
Moços e no Sheraton Centre. Ele esteve rodeando o prédio Dakota nos últimos
dias e conseguiu obter um autógrafo num disco de Mr. Lennon quando este saía
para o estúdio. Permaneceu no Dakota de noite esperando que Mr. Lennon
voltasse. Pouco antes das 11 horas, John Lennon e sua esposa chegaram de volta
ao Dakota numa limusine que parou na frente do edifício. Existe uma entrada de
automóvel que podia ter sido usada. Os dois saíram e andaram até a arcada do
Dakota. Este indivíduo, Mr. Chapman, veio por trás e chamou “Mr. Lennon”. Em
seguida, em posição de combate, esvaziou o revólver Charter Arms calibre 38. O
sr. Lennon gritou “Fui baleado”, subiu os degraus, empurrou a porta e caiu.”
Coda
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Comoção coletiva com a notícia do crime |
Centenas de pessoas se aglomeraram em frente ao Dakota, assim que a
notícia se espalhou, cantando Give Peace A Chance. Muitos choravam, portavam
velas e bastões de incenso. Lá dentro Yoko ligou para Paul McCartney e para
Mimi, a tia que criou John. Ela foi acordada e, quando disseram que era Yoko,
sua primeira reação, ainda sonolenta, foi dizer: “O que ele aprontou desta
vez?” Ringo, que estivera com John dois meses antes, pegou um avião para Nova
York nas Bahamas com a noiva Barbara Bach, desembarcou e foi direto para o
Dakota.
Julian Lennon, filho do primeiro casamento, veio do País de Gales. Paul
McCartney, pálido e abatido, falou com a imprensa na saída do Air Studio e
pediu todo apoio a Yoko. Em comunicado, emitido mais tarde, Paul disse que as
diferenças entre os dois, na reta final dos Beatles, de 1968 a 1970, eram coisa
do passado e que se tornavam grandes amigos outra vez. George Harrison estava
gravando quando recebeu a notícia. Interrompeu e foi para casa. Mais tarde, num
comunicado, disse: “Depois de tudo que passamos juntos eu tinha e ainda tenho
um grande amor e respeito por John. Estou atordoado. Roubar uma vida é o roubo
mais definitivo.”
O corpo de Lennon foi cremado dia 10 de dezembro no Ferncliff Cemetery
em Hartsdale, Nova York. Não houve velório. Yoko Ono espalhou as cinzas no
Central Park, onde cinco anos depois construíram o Strawberry Fields Memorial.
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Memorial Strawberry Fields |
O Assassino
Mark David Chapman, hoje com 63 anos, está confinado desde 15 de maio de
2012 na Wende Correctional Facility em Alden, estado de Nova York. Foi
condenado a de 20 anos à prisão perpétua em 24 de agosto de 1981 e levado para
a penitenciária de Attica, na cidade homônima do estado de Nova York, onde
permaneceu até ser transferido. Pela sentença ele podia requerer liberdade
condicional a cada 24 meses após 20 anos de prisão e o fez no ano 2000. Desde
então teve o pedido negado 10 vezes, a última em 23 de agosto deste ano. A
próxima audiência de condicional é em agosto de 2020.
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Mark Chapman em 2013 |
Na época do processo, Chapman citou argumentos religiosos e acusou John
de hipocrisia para justificar seu crime. Ele se mostrou irritado com o primeiro
álbum solo John Lennon/Plastic Ono Band (1970) pela música God, em que Lennon
proclama descrença em tudo, incluindo Jesus, e diz que Deus é um conceito que
usamos para medir nossa dor. E ainda pela declaração dele em 1966 de que
os Beatles eram mais populares do que Jesus. "Eu fiquei com raiva porque
ele disse que não acreditava em Deus e não acreditava nos Beatles. Quem ele
pensa que é, falando essas coisas contra Deus, o céu e os Beatles. Uma nuvem
negra tomou minha alma de tanto ódio e revolta.”
A mulher dele, Gloria, afirmou: "Ele ficou com raiva que Lennon
pregasse o amor e a paz e tivesse milhões de dolares.” Chapman ampliou: “Ele
nos dizia para imaginar que não tínhamos bens e lá estava ele, com milhões de dolares,
iates e mansões no campo, rindo de gente como eu que acreditava nas mentiras
dele, comprava os discos e que tinha sua vida influenciada pelas músicas dele.”
Chapman tem bom comportamento, se diz religioso e tem direito a uma
visita íntima de 42 horas por ano da mulher Gloria.
Observações
Este é o relato mais fiel que consegui levantar através de pesquisas em
livros e na internet. Há várias discrepâncias nas pesquisas, os horários
certamente são aproximados, algumas informações contraditórias são absurdas,
como os nomes dos quatro policiais que chegaram primeiro ao Dakota. Bastava
olhar a ocorrência na delegacia para ver os nomes, mas há vários deles citados
na mesma hora e no mesmo lugar. Optei pelos citados mais vezes.
Um erro comum repetido em vários livros, incluindo em John Lennon
A Vida, de Philip Norman, que citei, é que John tomou o desjejum no Café
La Fortuna, que ficava a um quarteirão do Dakota. Frequentadores do La Fortuna
na mesma época disseram a um documentário da BBC que o La Fortuna não abria às
segundas, dia de folga do pessoal. Acreditei no depoimento do doutor Stephan
Lynn porque em momentos muito traumáticos a gente costuma lembrar de
tudo, daí lhe dei este crédito.
Boa parte do material acima é do livro A Balada de John e Yoko, autoria
da equipe da revista Rolling Stone, que cobriu extensivamente os Beatles e a
carreira solo de John Lennon e fez a última entrevista com ele. Foi editado em
1983 aqui pelo Clube do Livro, da Editora Abril. Há exemplares à venda no
Mercado Livre. Recomendo.